quinta-feira, 14 de maio de 2009

"FALTA ALGUÉM NA MINHA CASA"


“Falta alguém na minha casa”:
emoções e sentimentos entre familiares de vítimas de desaparecimento forçado

Fábio Araújo,
Sociólogo, doutorando em Sociologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ

Uma das imagens mais fortes que ficou nas memórias sobre o regime militar e que serviram e têm servido para movimentar toda uma série de lutas políticas e sociais no Brasil, e na América Latina de uma forma geral, foi a figura do desaparecido político. Embora o uso da tortura e de tantas violências outras não tenha sido específico do período que corresponde à ditadura militar, foi aí que ela ficou mais evidente e pública, por vários motivos. Um desses motivos se deve ao fato de que foi nesse momento que setores das camadas médias sentiram intensamente o peso do braço penal de um Estado repressivo e violador dos direitos humanos e começaram a se manifestar e reivindicar verdade, justiça e reparação. Foi um momento em que o medo e o terror foram legitimados institucionalmente, erigidos sob a forma de lei e generalizados através da Lei de Segurança Nacional. Foi aí também que a categoria desaparecido ganhou eficácia simbólica. Mas a prática de desaparecer pessoas não se resumiu ao triste período da ditadura militar, continua nos dias de hoje. O desaparecimento forçado, legado da ditadura, hoje volta-se prioritariamente contra os pobres da cidade, vistos como perigosos e como uma ameaça.

O desaparecimento de uma pessoa coloca uma série de questões. O que significa “desaparecer” com uma pessoa? Como os familiares lidam com esse acontecimento? Como ele afeta as emoções, os sentimentos e a saúde dos familiares? Que tipo de reações e protestos o desaparecimento é capaz de suscitar? Como os familiares das vítimas passam a interpelar o Estado por justiça e reparação? Que tipo de justiça e reparação são demandados pelos familiares das vítimas? Que estratégias são formuladas para a denúncia pública? Como esse tipo específico de acontecimento é associado a outras formas de violência e relacionado a rituais e formas de se fazer política?

O desaparecimento provoca uma ação inversa à concentração de espaço-tempo requerida socialmente para enfrentar a morte. Os familiares dos desaparecidos, por muitos anos, esperam, buscam, abrem espaços. Esperam a volta do ente querido vivo, buscam pistas, informação precisa sobre o local, modo e data da morte, esperam o reconhecimento dos corpos e exigem respostas do Estado, exigem punições para os desaparecimentos.

Em um belo trabalho sobre os desaparecimentos políticos na Argentina, a antropóloga Ludmila Catela argumenta que a figura do desaparecido interessa como provedora de material específico para a conformação de um sistema simbólico, onde predominam elementos tradicionalmente associados aos rituais de morte. No entanto, como categoria construída e desconstruída, com ritmos e espaços históricos e sociais, ela só pode ser compreendida como um princípio de oposição às idéias de morte. Em vez de marcar e facilitar a passagem do mundo dos “vivos” ao mundo dos “mortos”, os rituais colocados em cena para dar conta do desaparecimento de uma pessoa transformam a ausência do corpo em um capital de força política e cultural que se expressa sob o registro da denúncia. Sem corpo, sem um momento específico de luto e sem uma sepultura para a realização dos rituais de morte, Catela propõe que o desaparecimento pode ser pensado como uma morte inconclusa.

O desaparecimento de uma pessoa provoca rupturas no cotidiano de quem fica. Com o desaparecimento dos filhos a rotina das “Mães de Acari” passa por transformações. Novas atividades que até então não faziam habitualmente parte de suas vidas cotidianas subvertem o tempo e o espaço dessas mulheres. O cotidiano que basicamente se resumia aos afazeres domésticos ganha novos contornos e novas cores. O desaparecimento altera a vida de quem fica, as coisas “saem do lugar” e a vida parece sair de foco. Afinal, como Vera faz sempre questão de salientar, “falta alguém na minha casa”. O desaparecimento passa a dividir e marcar o tempo e a memória de quem fica, a vida torna-se dividida em um antes e um depois do desaparecimento e esforços são direcionados no sentido de restabelecer a rotina cotidiana rompida pelo choque do acontecimento. Rotina que só pode ser restabelecida com a volta de quem partiu ou com o esclarecimento do que aconteceu. Algumas perguntas não se calam para quem fica. Onde estão essas pessoas desaparecidas? Que fim teriam levado? Será que estão mortas ou há possibilidades de serem encontradas vivas? Se estiverem mortas, como tudo parece indicar e mesmo as mães reconhecem, onde foram parar os corpos? O que resta a fazer, então, além de sofrer?

Através da comunicabilidade da experiência do choque, denunciando publicamente um drama e uma injustiça, as mães dão início a um jogo de acusações buscando justificar e legitimar suas denúncias, em busca de justiça e reparação. Argumento que a partir da vivência do luto estas mães elaboram práticas reivindicativas de justiça, com menor ou maior sucesso, na medida em que a denúncia pública do acontecimento ganha justificação e legimitidade pública. Neste processo, trava-se uma luta por justiça, marcada por uma forte dimensão moral, onde são elaborados “repertórios”, ou “idiomas de ação”, envolvendo símbolos e rituais, capazes de movimentar toda uma política dos sentimentos, sobretudo a partir do universo simbólico da maternidade, da morte e da religião. Por outro lado, como a maior parte dos casos hoje registrados refere-se a pessoas das classes populares, o principal obstáculo que enfrentam é o preconceito contra a favela e os favelados, tendo que romper duplamente com a condição de falar de um lugar de despossuído e de um território criminalizado.

Diante da ausência daqueles que passaram diretamente pela situação limite, daqueles que foram e estão desaparecidos, quem aparece para falar em seus nomes são principalmente as mães. O testemunho dessas mães representa uma tentativa de lutar pela memória dos filhos, de limpar dos estigmas e dos estereótipos que tentam marcar a escritura dessa memória. O próprio corpo das mães, cansado, mitigado, de tanto procurar pelos filhos desaparecidos aparece como testemunho dessa luta.

Um comentário:

Victor Gil disse...

Querida amiga Marisa.
Se pudesse também participava na discussão sobre o tema. Mas a lonjura e o oceano impedem que isso aconteça.
Beijos e bom fim de semana.
Victor Gil